domingo, 3 de janeiro de 2021

Feijão e o sonho: um retrato do abismo existencial brasileiro.

 

Feijão e o sonho: um retrato do abismo existencial brasileiro.

O romance “Feijão e o sonho”, publicado em 1938, e de autoria de Orígenes Lessa, nos coloca diante dos sofrimentos e angústias do poeta Campos Lara. Lara, ou Juca, como é chamado na história pela a esposa Maria Rosa, é um típico “idealista”: vive para a poesia e seus ideais, mas não vive para a “vida”. As consequências disso são desastrosas: Lara está sempre com uma pilha de contas para pagar, devendo a Deus e o mundo, filhos cheios de fome e uma esposa amargurada com a vida de miséria que levam. Maria Rosa, ou “Rosinha”, é, ao contrário de Lara, uma pessoa “prática”. Ela não se preocupa com glórias imortalizadas nas letras; antes a glória terrena – arroz e feijão na mesa, boa roupa, bons móveis, boa vida – do que uma nobre utopia que não alimenta as bocas.  Maria Rosa, na estória, chega a invejar a sua prima, Creusa, por viver uma “boa vida” ao lado do fazendeiro, e caipira, Gomes. Gomes não sabe nem falar “Tietê”, mas dá tudo do bom e do melhor para Creusa – enquanto Lara só lhe dá desgosto e, é claro, poesia.  E é em meio a este antagonismo dialético, entre o idealismo de Campos Lara, e a “praticidade” de Maria Rosa, que mergulhamos, por assim dizer, no abismo, no fosso, que separa o brasileiro da verdadeira vida, inserindo-o em um drama existencial muito peculiar. Mas que abismo é esse?

Há uns meses – só para ilustrar o que eu quero dizer –, li um pouco sobre a difícil vida do escritor português Alves Redol. Pretendido pelo pai, desde os 14 anos, para a vida do comércio, Redol não teve muito tempo para se dedicar ao sonho de ser escritor. Muito novo, vai à Angola com o intuito de começar novas empreitas comerciais, passa o pão que o diabo amassou, vê de perto a miséria humana e, depois, volta para Portugal desempregado, tendo como único meio de sobrevivência um trabalho que lhe fora arranjado como vendedor de pneus. Em meio a tantos anos de desgraça, não se sabe de onde, extrai forças para publicar, em 1939, o seu primeiro romance, intitulado “Gaibéus”, inaugurando, quase sozinho, o movimento neorrealista em Portugal – e, daí em diante, dá continuidade à sua vida literária. Passando os olhos em poucas páginas de seus romances, vê-se que os anos de penúria não foram esquecidos. Tudo o que viveu, serviu como material bruto para realização do seu “sonho”. Encontramos em Redol um escritor de carne e osso: tudo o que havia presenciado, acha, em seu mundo imaginado, voz; seus dramas conquistam, na culminação dos seus escritos, unidade.

                Voltando ao icónico Campos Lara, vê-se que o que constitui verdadeiramente o seu drama, e tanto o amargura, é a incapacidade de “digerir” a vida que leva. A disparidade do meio social em que vive, tão avesso aos seus ideais, é, para Lara, um martírio. Se a vida de Campos Lara, em meio tão ignóbil, torna-se pesada, para Maria Rosa vergonha não é desconhecer os versos de Baudelaire ou a prosa de Vieira, mas sim ter que carregar, mesmo diante dessa gente, a humilhação de uma vida indigna, somando-se ao fardo de ser a “sombra” de alguém que sequer é capaz de pagar as próprias contas e alimentar os filhos. O interessante desta dicotomia de “Lara e Rosa” é que ambos representam a face de uma mesma moeda, expondo o nosso abismo.  No Brasil, ou vive-se de sonho, tornando-se um homem “desajuizado”, sem força, visto como “louco” e “idealista”, ou, sucumbido às necessidades da vida prática, rebaixa-se a um tipo “mula de carga”, inculto, pragmático e medíocre – os dois? Não dá! Mas, não são os dois pontos de vistas errôneos? Não são ambos, imagens distorcidas do que é a vida? A vida não se resume a pagar as contas, como também não se resume a viver de sonhos e letras.

                Se pegarmos o caso de Alves Redol, veremos a vida de um homem que teve tudo para desistir do seu sonho de juventude. No entanto, em vez de ter sido vítima de inúmeros sofrimentos e amarguras, e ter deixado de mão o seu desígnio, Redol os integrou em sua vida de escritor, ressignificando-os. O grande diferencial do escritor português e de tantas outras figuras ilustres é que elas nos deixaram o legado que a vida é esta busca pela integração de elementos divergentes à nossa personalidade – afinal, não é Goethe quem diz que a maior força que existe é a personalidade humana?

                Segundo Hegel, a consciência de si é adquirida no confronto dialético com aquilo que é o outro, com a alteridade – e o que é o outro senão a circunstância? O ponto chave disso é que a fórmula de Ortega y Gasset, tão repetida atualmente, “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim” é, na verdade, um outro modo de proferir a busca pela unidade. Platão, por meio dos seus diálogos, tentava encontrar a unidade da experiência vivida por meio da confrontação das reminiscências de partes da própria experiência. Mas essa busca por unidade não é um privilégio só da filosofia. A consciência de si, tão mencionada por Hegel, é, em alguma medida, a unidade da vida; é aquilo que Redol buscou em sua jornada. Quando nos defrontamos com o mundo exterior, diferente e avesso a nós, e, mesmo assim, tentamos ressignificá-lo à luz da nossa consciência, é porque estamos tentando dar unidade àquilo que, em um primeiro momento, parece ser dissolvedor.  Buscar por esta integração entre os acontecimentos exteriores e a nossa personalidade é a entrada no mundo civilizado. Caso contrário, tornamo-nos como os personagens das comédias, sempre abaixo da situação, fragmentados, caricatos, oscilando entre o idealismo e o embrutecimento.

                A oscilação entre “Feijão e o sonho”, o título que dá nome ao livro, não simboliza só as necessidades materiais da vida, personificada na personagem de Maria Rosa, ou a busca por um ideal, retratado no personagem de Campos Lara, mas representa, no abismo que existe entre sonhar e colocar o feijão na mesa, a dificuldade que temos em encontrar um elo entre o real e o ideal. Nossa literatura ainda, desde os tempos de publicação desse romance, não foi capaz de retratar um personagem que fugisse desse esquema. Mas como podem os escritores extraírem uma história que desconhecem? Se a literatura é, como dizia Aristóteles, uma mimesis, como em outras artes, ela é responsável em retratar aquilo que vê. E se não há sujeitos como Alves Redol para serem vistos em nossas terras, então, o que será posto no papel senão aquilo que é o nosso triste e fiel espelho?

sábado, 10 de outubro de 2020

Dostoiévski e a doença

 

Dostoiévski e a doença



Fazia tempo que eu não parava para ler Dostoiévski. Aproveitei o pouco tempo vago que tive aqui e acolá, nessas últimas semanas, e comecei a reler, considerada por muitos, a Magnum opus do autor, “Crime e Castigo”. Me deparando de novo com esse clássico, e já munido com a experiência das leituras de outras de suas obras, não pude deixar de notar o uso incomum que o escritor russo faz da palavra “doença”.  Vejamos...

A partir do fatídico episódio do assassinato da usurária vetusta – na verdade, acredito que até antes disso –, vemos Raskolnikóv, assim como o homem de “Notas do subsolo”, sofrer de uma angustiante doença que o esgota. Ele anda para lá e para cá nas ruas de São Petersburgo sempre muito pálido e embotado. Todos, ao vê-lo, se referem a ele como um sujeito que sofre de algum mal: de uma doença. Inclusive, os personagens que o cercam, quando o encontram, lamentam-se ao dizer “Essa doença está acabando com Ródin (apelido do personagem)”. O mais curioso disso tudo é que ninguém, assim como no caso do homem do subsolo, sabe nomear a doença a qual o jovem padece. Zóssimov, o médico arranjado por seu amigo Razumikhin, é o único que arrisca a dar um palpite ingênuo, ao dizer que o seu “mal” parece estar atrelado à uma “ideia fixa”. Mas, relacionado à idéia fixa ou não, qual é a doença que tanto o faz sofrer? E, afinal de contas, o que quer Dostoiévski ao se referir a este mal como uma “doença”?

Comumente, quando nós mencionamos que alguém está “doente”, não só damos nome à doença – como à inofensiva gripe até ao temeroso câncer –, mas também, nessa identificação com o nome, reconhecemos que o termo “doença” está relacionado a um mal engendrado no corpo. Mas não é esse o uso que Dostoiévski faz da palavra. O mal de Raskolnikóv não é um mal engendrado no corpo. O que vemos, ao longo da história, é que a doença que tanto fadiga o jovem, parece-nos ser um tipo de afecção do espírito.

Desde o episódio do assassinato, e sendo alimentado pelo medo, Raskolnikóv sente o peso de carregar consigo, em sua alma, uma culpa existencial muito mais profunda que a do fato de ter sido o agente daquela infeliz ação: a culpa do pecador.  Raskolnikóv é, como o homem do subsolo, um sujeito que também possui aquilo que Dostoievski se referiu como excesso de consciência, isto é, o impacto das suas ações não é sentido de modo “banal”. O excesso de consciência é o que o faz absorver a culpa como pecado; que o faz sentir o peso e a carga moral do seu ato como doença. Em outras palavras, o ato, sentido inconscientemente como pecado, e levando consigo o peso da culpa, torna-se uma “doença” à medida que o sujeito, ao senti-lo e ruminá-lo, deixa-se consumir por ele.

A visão de doença construída por Dostoievski se assemelha à visão que os gregos tinham sobre o “Páthos”. Para os gregos, qualquer tipo de mal que fizesse com que perdêssemos o juízo, e, assim dizendo, se apoderasse da nossa psique, era um tipo de doença, de “páthos” – e daqui deriva o termo paixão – que, uma hora ou outra, seria sentida, também, pelo corpo. O ódio, a fúria, a culpa, a frustação, e tudo aquilo que tivesse o poder de reinar em nossa alma, era, para os gregos, uma espécie de “páthos”.

É interessante observar, então, que o uso que Dostoievski – como todo grande autor ao construir um "vocabulário" próprio – faz da palavra “doença”, não é o que usualmente conhecemos como uma disfunção corporal. O importante a assinalar é que a palavra “doença”, para o autor russo, evoca todo um universo de relações, e sentidos, que transcende os fatos do corpo – a doença não é, para ele, somente um fenômeno corporal, mas sim fruto de males que estão para além dos dados “materiais”. Quando, então, nos referimos à uma doença – se partirmos da mesma intenção de Dostoievski – estaremos nos referindo não somente a um fato sentido pelo corpo, mas a um “todo” que se dá entre o corpo e a alma. Assim como o filósofo romeno Constantin Noica, Dostoiévski nos faz acreditar que há “doenças do espírito”, e que, se não forem tratadas, não somente uma parte de nós padecerá, mas, assim como no caso de Raskolnikóv, todo o nosso ser.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

Aborto e o caos social: o que as tragédias gregas têm a nos dizer?

 

Aborto e o caos social: o que as tragédias gregas têm a nos dizer?


Em meio a tanto alvoroço social, decorrente dessa infeliz e iminente situação do aborto de uma menina de 10 anos, que muito deve ter sofrido em sua vida, me veio à mente o pensamento do quão trágica, no sentido grego da palavra, é a situação dessa criança. De um lado, estão aqueles defensores ávidos da expansão de medidas pró aborto, em nome de uma causa “social”; do outro, há aqueles que fazem militância , seja em frente a um hospital, seja em rede social, em nome de uma ordem que transcende, não somente o nosso mundo, mas à capacidade cognitiva dessa gente. E entre dois grupos, que anseiam por reparação, há sempre um indivíduo sozinho e, ao mesmo tempo, imerso em uma situação aterradora. Mas, afinal, o que tem de trágico, mesmo, nisso tudo?

Aos que não estão habituados às tragédias gregas, digo que uma das suas principais marcas era a tentativa de reparação de um chaos, de uma húbris social, por meio da dissolução de um indivíduo. Em Édipo, por exemplo, quando o mesmo descobre que é ele o responsável pelo mal da peste causado à sua cidade, há uma reparação por meio de sua cegueira auto infligida e, consequentemente, a sua ida para Colono. De modo não diferente, em Antígona, também, no final da tragédia, há a reparação do chaos perpetrado pelo herói por meio de sua morte. O fato é que essa estrutura narrativa trágica, de reparação por meio do sangue do próprio herói – ou sangue de alguém que se interliga a ele –, segue-se na maioria das tragédias: sempre deve haver algum tipo de sacrifício em prol da purificação e restabelecimento da ordem. Se olharmos a peça “Medéia”, por exemplo, onde a personagem, para vingar-se de Jasão, mata os próprios filhos – embora o sangue derramado não tenha sido o seu (ou até mesmo o de Jasão) –, vemos que Medeia acredita estar reparando os danos sofridos por meio do sacrifício de seus filhos, aqueles que, não somente são fruto da ascensão e queda da heroína, mas que interliga-se a ela e a Jasão pelos laços de sangue.

 Agora, o que se revela como uma das estruturas fundamentais destas obras, é que o sacrifício nunca é fruto de um desejo, mas sim, de um pedido ardente. No entanto, se o sacrifício é um “pedido”, por quem, então, ele é feito? E aqui o papel do Coro aparece como crucial. É a voz do coro, sempre, que anseia pelo sacrifício; que força com que o herói busque por alguma reparação. O coro não é, somente, a voz do coletivo ou da pólis: o coro é a voz da própria ordem tentando se restabelecer novamente – ou, a partir da cosmovisão grega, é, enquanto buscam aplacar seus apetites, fruto dos desejos ensandecidos de entidades primordiais conhecidas como “fúrias”, e que há muito inferniza a vida dos seres humanos.

Vejamos, por exemplo, um trecho do coro das mulheres de corinto na obra “Medeia”, “Assim farei. Com justiça castigarás o teu marido, ó Medeia. Não me admiro que deplores a tua sorte.” . Reparem na expressão “Com Justiça”, pois é por meio da preposição “com” que o coro diz à Medeia o modo como ela deve reparar aquela iniquidade – o inevitável sacrifício de seus filhos.

 No coro de Édipo Rei, existem dois momentos marcantes, também. O primeiro, quando Édipo ainda buscava as razões pelas quais a sua cidade sofria a mazela da peste “Mas suplicamos ao deus que não cesse a campanha pela salvação da cidade” ; e o segundo momento, quando o coro, já refletindo acerca da deplorável situação de Édipo diz “No entanto, para dizer-te a verdade, foi graças a ti que um dia pudemos respirar tranqüilos e dormir em paz!”. O que há de interessante, nesses dois momentos da peça, é que no primeiro o Coro pede ao herói que continue a sua busca pela reparação, pois só assim a ordem poderia ser restabelecida e a cidade ser salva. No segundo momento, o que é interessante e, ao mesmo tempo, paradoxal, é que o coro reconhece que fora Édipo o responsável pelo início e pelo fim do chaos que acometeu a cidade. Outrora, ao desafiar a Esfinge, Édipo livrara Tebas de um grande mal, ao passo que, sem saber, cumpria a profecia ao matar o próprio pai, levando, novamente, à cidade as maldições. Somente no ato final, em que derrama o próprio sangue cegando-se e encerrando o ciclo, é que a cidade pode reviver a paz.

As histórias antes relatadas podem parecer um tanto absurdas. À primeira vista, não acreditamos que entre os gregos devia existir tamanha violência. Lembremos que o conteúdo dessas narrativas trágicas deriva de mitos lendários de uma época que, embora já passada, ainda era presente na memória dos gregos. Vale ressaltar que alguns historiadores apontam, entre eles o conhecido H.D. Kitto, que as lendas das filhas imoladas de Jacinto, derivam da prática do sacrifício humano, no período da Grécia Micênica, realizadas, comumente, em nome de Apolo – deus, não analogicamente à toa, da “harmonia”.

O filósofo francês, René Girard, conhecido pelo seu conceito de “Bode expiatório” – conceito este, que, alinhado com o que vem sendo dito, explicita como comunidades “escolhem”, geralmente, algum indivíduo para sofrer as penalidades necessárias para o restabelecimento do equilíbrio – diz o seguinte a respeito à ideia de sacrifício “O sacrifício, que do meu ponto de vista é a primeira instituição humana, consiste, para uma comunidade que tem experienciado este fenômeno e se tem reconciliado, procurar a repetição da morte de uma vítima, como da primeira vez em que essa vítima que juntos matamos, em nome da comunidade, nos salvou.” Ou seja, o sacrifício é, por excelência, a morte daquele que é escolhido como o “expiador” dos pecados de uma comunidade. Girard ainda diz que as práticas de linchamento – ou, ironicamente, intitulada pelos jovens de hoje em dia de “cancelamento” – não podem ser excluídas como uma forma de sacrifício, isto é, na busca pela dissolução de um indivíduo em nome do coletivo.

Contrário às práticas pagãs, e rompendo com o arquétipo da busca por reparação da mentalidade primitiva, o Cristianismo, que é inegavelmente uma força formadora do nosso processo civilizacional, rompe com a busca trágica por reparação e a consequente dissolução do indivíduo. Em seu “mito” fundador, Cristo morrera por nós para que os nossos pecados fossem expiados e, com isso, nós mesmos não nos tornássemos “objetos de sacrifício”. Tomado como “bode expiatório” do povo Judeu, em sua época, Cristo ao sacrificar-se, liberta, então, por meio do seu ato, todos nós, da necessidade de nos oferecermos em sacrifício da ordem – pois a ordem se encontra em Cristo, ele é a justiça encarnada. Ao passo que a justiça se fez presente na terra, atraindo para si os males humanos, o homem, que busca a salvação eterna através de Cristo e seus ensinamentos, salva, não somente a sua alma, mas a si mesmo enquanto indivíduo – podendo-se dizer, então, que, diferente das práticas primitivas, está contido, na salvação cristã, a não dissolução da pessoa em prol da comunidade, pois aquele que segue cristo não “morre”, e muito menos se “apaga”.

                Vê-se que nesse infeliz caso da menina de 10 anos, quando as massas, então entregues às forças “ocultas” que anseiam por reparação, repetem a estrutura mítica de narrativa – e não é por ser mítica que é “ilusória” – , revelando-a como marca, ainda presente, na psique humana. Contudo, são nesses momentos de loucura e frenesi que devemos tentar voltar os nossos olhos para aquilo que nos formou como civilização, pois, se deixarmos que os anseios mais vis de nossa alma se professem, e o desfecho trágico se cumpra, sempre, algum indivíduo, sofrerá com os desejos das “fúrias” e os pedidos do coro, tendo que saciar esse apetite por reparação, seja com a vida, seja com a morte.



quarta-feira, 22 de julho de 2020

Conto: Sem fome


                                                   

Enquanto aquele dia enevoado findava-se, ele aproveitou o pouco da claridade cinzenta que entrava pela janela. No quarto, a penumbra era suficiente para lançar luz nos papéis sobre a mesa. Começou a revirá-los. Mexe daqui, mexe dali. Os movimentos dos braços, em incessante busca, aumentavam a desorganização dos papéis. Conseguiu. Pausa e suspiro de alívio: estava às mãos o que queria. Trouxe, para próximo dos seus olhos, as duas fotos que procurava – queria ver mais de perto aquele momento, já distante e cristalizado.

Nas fotos, ele e seu pai: sorrisos largos, abraçados, como dois grandes amigos. Na primeira, os dois com gorros rubros, sentados, lado a lado, no sofá bege da sala. Ao lado, um miúdo pinheiro de folhas verdes e artificiais, ornado de pequenas bolas douradas e vermelhas: era natal. Na segunda foto, estavam os dois em pé, próximos à churrasqueira de barro: era dia de festa na casa.

Olhou demoradamente para elas enquanto revivia cada um daqueles momentos em sua memória.

–  Parece que foi ontem – disse para si, levando as mãos à cabeça. E, enquanto ali se deteve, levantou o semblante; voltou-se para a janela. Fechou os olhos. Conteve as lágrimas.

– Não, não... não posso chorar, meu pai não iria gostar.

            Os anos de cumplicidade vieram à mente naquele encontro com o passado. Já faz alguns meses, pensou. Sentia que o caminhar dos dias não ia diminuir o sentimento de desamparo. Precisava guardar qualquer coisa que fizesse jus à presença daquela figura paterna. Achou as fotos que queria, mas a evocação dessas lembranças só aumentou a sua angústia diante do destino implacável.

            Tudo aconteceu de forma tão repentina! Estranhou a sensação de distância entre o passado e o presente. Parece que havia só alguns dias que tinha feito suas ligações noturnas ao pai. Quando começavam a falar, se demoravam em seus telefonemas: conversavam amenidades; discutiam coisa séria.

            Sentou-se na cadeira próxima à mesa, e pôs-se a refletir. Pensou como todas aquelas cotidianidades eram importantes para ele. Gostava de ouvir as opiniões do seu pai nos assuntos mais miúdos.

– Será que ele sabia o quanto tudo isso era importante para mim? – proferiu em voz alta

            Tentando se recompor, encarava as fotos novamente, colocadas em cima da mesa. Ali, sentado, adveio a idéia que há no mundo insignificâncias insubstituíveis, como aquelas que praticava com o pai.

            Virou-se para janela novamente. A penumbra se dissipara, e uma escuridão tomara conta do quarto: a noite chegou. Não teve forças para levantar-se e acender a luz. Em meio às reflexões, um cansaço o abatera. Os meses, desde que tudo aconteceu, pesavam as costas. Seguia, um dia após o outro, fiel à rotina, mas sem o mesmo vigor – a vida já não era mais a mesma. Perdeu um dos seus combustíveis diários. Esse pensamento era o único que lhe fazia sentido para explicar aquele abatimento incomum.

            Quis ver se havia algo de novo no celular. Olhou rapidamente a tela: uma mensagem; era sua namorada perguntando se estava tudo bem. Ela sabia que ele ia retornar à casa que crescera – de onde se mudou havia tempo. Incentivado pelo próprio pai, foi ganhar a sua vida; traçar novos rumos. Não quis responder à mensagem. Colocou o aparelho no silencioso e desligou a tela. Sem perturbações.

            Ao virar o rosto, viu a cama que passou anos sendo o porto dos seus sonhos. Quis jogar-se ali para tentar reviver aqueles tempos. Pensou em quão bom seria fugir da sensação de desalento, de desabrigo da alma. Desejava, por um momento, que tudo fosse onírico; se cansou de carregar a vigília do presente.

            Colocou os braços sobre a mesa e encostou sua testa sobre eles. A mãe o gritara

– Oh, menino! Você não vai vir comer não? Desce daí!

A mãe tinha feito arroz, feijão, bife, fritas... tudo aquilo que ele adorava; bastava a mesa estar pronta e ele não perdia tempo para fartar-se. Mas, ao pensar na velha mesa da cozinha posta, pensou no seu pai, nos jantares em família. Subiu-lhe um mal-estar. A imagem das suas comidas preferidas não o apetecia.  Tudo se transfigurou, ganhou um ar mórbido. O simples ato de imaginar-se colocando o garfo na boca revirava o estomago. Não era desse alimento que precisava. Deu uma lufada, recuperou o fôlego e respondeu à mãe

– Não, mãe, não quero comer. Estou sem fome!

 

sábado, 18 de julho de 2020

Afinal, o que é o mito?




Na excelente e curta introdução à mitologia grega, Pierre Grimal nos diz que, assim como o logos, o mito é uma dimensão da linguagem. Mas, o que significa dizer que as lendas de heróis – como as de Hércules –, ou os antigos relatos cosmogônicos, eram “linguagem”?  É claro que a imortalização daquelas histórias, seja pelas mãos de Homero e Hesíodo, seja pela oralidade da memória popular, nos coloca diante delas como “fala”, como aquilo que é “contado” para nós – sendo assim, linguagem. E era a este fenômeno que Grimal está se referindo?
O mito, por meio da evocação das suas imagens e narrativas, transportava indivíduos e comunidades inteiras à um tipo de abertura para a realidade que somente a linguagem, enquanto fenômeno mediador do mundo, pode proporcionar. O mythos não é um meio qualquer de se referir ao mundo; muito menos, é uma forma demonstrativa (movida por logos) de explicá-lo. A essência do mito reside no próprio poder da linguagem de nos transportar para um mundo de sentimentos, memórias e, principalmente, significados inefáveis. O mito, na medida em que narra, e que nos “diz” algo, nos coloca diante de um tipo de compreensão acerca do “nosso” mundo, de modo que nem mesmo as mais perfeitas descrições científicas podem nos proporcionar – podendo-se dizer que toda literatura já residia, de modo embrionário, naquelas histórias.
Dizer que o grego tinha um mito para tudo, isto é, para as explicações históricas sobre a formação da sua pólis, para um espaço geográfico (como o monte Taigeto), ou até para acasos do destino, era dizer que aqueles indivíduos, na busca por sentido, recorriam a essas histórias, às narrativas, para sentirem que o mundo também queria lhes dizer algo; que o mundo falava com eles, sendo aquelas histórias somente “modos” da fala do mundo.
Pode-se entender que o mito aparece, não só para os gregos, mas ainda para nós, como uma dimensão mesma da linguagem, um fenômeno que irrompe da busca incessante do homem para se sentir pertencente ao mundo. Ao revivermos essas longínquas e, ao mesmo tempo, atualíssimas histórias, ao nos confrontarmos com os seus diferentes usos nas tragédias e epopéias, um tipo de “fenda” apresenta-se à nossa consciência. É por meio desse evocar imagético, na forma de mythos, da narrativa por excelência, que, não somente o homem primitivo, mas o homem, no contínuo exercício da sua humanidade, e com o distinto uso da linguagem, apodera-se da própria vida.


quinta-feira, 9 de abril de 2020


Um testemunho da terra dos sentimentais.

Vocês devem achar que eu gosto de falar mal de brasileiro, né? Que é algum tipo de prazer sádico. Ou, quem sabe, uma espécie de autoflagelo, tendo em vista que sou tão brasileiro – carioca ainda por cima! – quanto qualquer um outro aqui.  Mas, vou ser sincero com vocês: pior que não faço por mal. Se faço, é por uma necessidade mental. É, digamos, para manter a sanidade, ou, melhor: faço para tomar consciência da minha própria situação enquanto vivente desta terra onde não se vêem mais palmeiras, muito menos se escuta o canto dos sabiás   porque, se eu os ouvisse cantarolando por aí, aliviaria o meu pesar. Vejam meu testemunho quase como uma espécie de "exame de aptidão psicológica ". Escrevo para atestar que não caí em uma sandice. Desculpem-me, mas devo confessar o seguinte: se eu não botasse essas coisas "para fora", correria o risco de perder o tino, ou, como os muitos dizem por aí, ficar como os “doidos varridos” que, sem rumo e sem destino, birutinhas da Silva, andam a “bater cabeças” nas esquinas.     
 Pois bem, para não tomar muito vosso tempo, cá estou eu para falar de mais uma nota caricatural da nossa gente, e quero que vocês sejam minhas testemunhas, reparem só: o brasileiro é ou não é um sujeito muito sensível? Daqueles que levam “pouca coisa” para o lado pessoal, e do tipo afetivo que meia dúzia de duras palavras já são estacas enterradas no frágil coraçãozinho? O que eu quero dizer com isso, você se pergunta?!   Lhes darei um exemplo concreto: imaginemos um amigo nosso; um amigo, não! Um fiel escudeiro! Aquele tipo de pessoa que quando sabe que você está mal é a primeira a te dar aquela “moral”. Se a situação ficar feia, você sabe que com ela não vai ter “tempo ruim”. Conseguiu visualizar? Agora, vamos supor dois brasileirinhos assim, mui amigos, com esse tipo de amizade que você acabou de imaginar.  Os dois estão conversando sobre um terceiro sujeito, um profundo desafeto de um deles. De repente, aquele outro, cujo o tal do desafeto não fede nem cheira, diz para o segundo assim “meu camarada, eu sei que você tem essa desavença com o sicrano, mas nessa questão, em particular, em que vocês se desentenderam, ele está certo e você está errado.  Para ser sincero, você está sendo muito infantil tentando lidar com isso tudo.”. Daí o esbaforido “camarada”, já flamejante como em um incêndio súbito e irrefreável, diz “Como assim?! Você não é meu amigo?! Como pode você dar razão a um sujeitinho daqueles, e logo eu, que sou seu camarada de longa data, tu me falas uma coisa dessas?". Agora, congelemos a cena e pensemos: quantas incontáveis vezes já vimos tais reações semelhantes entre os nossos? Quantas vezes, não testemunhamos o romper de uma longa “amizade”, ou o insurgir de disputas estéreis, seja na fila do pão, seja nesta rede virtual em que vos falo, por pura afetação e sentimentalismo pueril?  Em terras tupiniquins, não basta ter razão, ou estar correto; não, só isso não basta para afagar a alma do brasileiro, ávida por mimos: você tem que ser simpaticíssimo, se não, nada feito.  Ai de quem violar esta regra! É o “décimo primeiro mandamento” por aqui.  Se dissermos que “fulano”, estimado por muitos, era um salafrário, um picareta da pior estirpe, dirão “Mas como pode? Ele é tão gente boa”. 
Não me entendam mal. Eu não tenho nada contra aqueles que se esforçam para serem simpáticos – e nem contra os que assim são naturalmente. Acho louvável a atitude de quem busca fazer de sua própria presença um agradável passatempo. Mas, pera lá, viver sobre a tirania dos sorrisos insinceros e da estima falsária? Não, amigos, eu digo não. Não posso estar de acordo com esta inversão da ordem natural das coisas. É de dar dores na fronte pensar em tal admoestação da razão. Eu não sei o que se passa nos miolos dos meus colegas compatriotas, mas tenho para mim que a mais simples distinção entre ter sapiência daquilo que pertence ao idealizado mundo dos afetos e , prudentemente, daquilo que pertence à concretude do mundo real, é a mais hercúlea das tarefas a ser empreendia por aqui. Eu não sei vocês, mas, cá entre nós, em uma terra em que aparências e vaidades, movida pelo mais tacanho sentimentalismo, fazem fama, sobrepondo-se à verdade e à retidão, só pode ser uma terra de loucos, não acham?



sábado, 29 de fevereiro de 2020

"Indústria Americana" não se trata de EUA X China

 

Vendo o documentário "Indústria Americana" fiquei pensando que, talvez, a grande marca que diferencia o Ocidente do Oriente é o princípio da liberdade. Explico: na antiguidade, os gregos costumavam se distinguir dos bárbaros por meio da língua. No entanto, para os helenos, falar grego não significava somente um modo de se comunicar, mas sim de partilhar toda uma visão de mundo grega; era reconhecer os costumes e valores que os tornavam gregos por excelência – e não bárbaros. Um dos princípios, que regia o modo como os gregos se viam e se diferenciavam, principalmente, dos povos orientais, comentado pelo historiador Kitto, era o de Eleutheria – que pode ser traduzido, aproximadamente, como liberdade. Todavia, Eleutheria não significa liberdade em seu sentido frouxo, isto é, de fazer o que bem entendemos, mas sim, de termos a nossa dignidade humana reconhecida no interior de uma comunidade. A autonomia grega significava que a vida seria regida por leis que preservassem o senso de justiça construído no interior da polis – como na democracia ateniense a participação das decisões na assembleia, ou, como na constituição Espartana, na escolha dos éforos (magistrados). Para os gregos, então, os regimes despóticos orientais só podiam ser, de fato, hábitos de bárbaros.  Se curvar à obediência sem sentido e ser regido por vontades arbitrárias era uma afronta à alma grega. Homero, no canto XVII, diz mais ou menos assim “Zeus retira ao homem metade da sua humanidade, no dia que a escravidão se apodera de sua alma”.
Pois bem, o fato é que essa presença da liberdade, como Eleutheria, ajudou a formar o Ocidente. Se esbarramos, ao abrir os livros de história, com inúmeras lutas em prol do reconhecimento da dignidade humana é porque, em algum lugar em nossa alma, ainda cintila aquela chama que guiava a consciência dos gregos. Ao me defrontar com a subserviência irracional dos chineses me espanto como talvez um Sócrates ou um Píndaro se espantaria. Uma das cenas mais marcantes é quando um dos americanos diz que, ao perguntar a um dos chineses “Por que fazer isso tudo? Por que esse trabalho exaustivo sem sentido?”, eles simplesmente o olhavam e saiam sem responder uma palavra. Talvez, de fato, a própria autonomia, não só da própria vida, mas da consciência, para termos a liberdade de soltarmos um simples “Por quê?” em busca de uma razão, seja estranho ao mundo oriental – e por isso, quando Heidegger disse que a filosofia era genuinamente grega, ele estava certíssimo, a meu ver. Portanto, “Industria Americana” vai além de um China X EUA, é algo muito mais profundo do que isso. Se trata não só de choques culturais entre países, mas entre cosmovisões (Ocidente x Oriente). É claro que EUA e China não são todo o Ocidente, ou todo o Oriente, mas eles estão inseridos em cosmovisões que moldaram e guiaram o curso de suas histórias. Agora, se nos espantamos com todos aqueles hábitos, que a nós nos causam horror, digo que o importante é não deixar que a chama se apague no nosso interior. Em tempos de obscurecimento daquilo que nos trouxe até aqui, ainda é preciso nos lembrarmos de quem somos: ocidentais.