Dostoiévski
e a doença
Fazia tempo que eu não parava para
ler Dostoiévski. Aproveitei o pouco tempo vago que tive aqui e acolá, nessas
últimas semanas, e comecei a reler, considerada por muitos, a Magnum opus
do autor, “Crime e Castigo”. Me deparando de novo com esse clássico, e já
munido com a experiência das leituras de outras de suas obras, não pude deixar
de notar o uso incomum que o escritor russo faz da palavra “doença”. Vejamos...
A partir do fatídico episódio do
assassinato da usurária vetusta – na verdade, acredito que até antes disso –,
vemos Raskolnikóv, assim como o homem de “Notas do subsolo”, sofrer de uma angustiante
doença que o esgota. Ele anda para lá e para cá nas ruas de São Petersburgo
sempre muito pálido e embotado. Todos, ao vê-lo, se referem a ele como um
sujeito que sofre de algum mal: de uma doença. Inclusive, os personagens que o
cercam, quando o encontram, lamentam-se ao dizer “Essa doença está acabando com
Ródin (apelido do personagem)”. O mais curioso disso tudo é que ninguém, assim
como no caso do homem do subsolo, sabe nomear a doença a qual o jovem padece.
Zóssimov, o médico arranjado por seu amigo Razumikhin, é o único que arrisca a
dar um palpite ingênuo, ao dizer que o seu “mal” parece estar atrelado à uma “ideia
fixa”. Mas, relacionado à idéia fixa ou não, qual é a doença que tanto o faz
sofrer? E, afinal de contas, o que quer Dostoiévski ao se referir a este mal
como uma “doença”?
Comumente, quando nós mencionamos
que alguém está “doente”, não só damos nome à doença – como à inofensiva gripe até
ao temeroso câncer –, mas também, nessa identificação com o nome, reconhecemos
que o termo “doença” está relacionado a um mal engendrado no corpo. Mas não é
esse o uso que Dostoiévski faz da palavra. O mal de Raskolnikóv não é um mal
engendrado no corpo. O que vemos, ao longo da história, é que a doença que tanto
fadiga o jovem, parece-nos ser um tipo de afecção do espírito.
Desde o episódio do assassinato, e
sendo alimentado pelo medo, Raskolnikóv sente o peso de carregar consigo, em
sua alma, uma culpa existencial muito mais profunda que a do fato de ter sido o
agente daquela infeliz ação: a culpa do pecador. Raskolnikóv é, como o homem do subsolo, um
sujeito que também possui aquilo que Dostoievski se referiu como excesso de
consciência, isto é, o impacto das suas ações não é sentido de modo “banal”. O excesso
de consciência é o que o faz absorver a culpa como pecado; que o faz sentir o
peso e a carga moral do seu ato como doença. Em outras palavras, o ato, sentido
inconscientemente como pecado, e levando consigo o peso da culpa, torna-se uma “doença”
à medida que o sujeito, ao senti-lo e ruminá-lo, deixa-se consumir por ele.
A visão de doença construída por
Dostoievski se assemelha à visão que os gregos tinham sobre o “Páthos”.
Para os gregos, qualquer tipo de mal que fizesse com que perdêssemos o juízo,
e, assim dizendo, se apoderasse da nossa psique, era um tipo de doença, de “páthos”
– e daqui deriva o termo paixão – que, uma hora ou outra, seria sentida,
também, pelo corpo. O ódio, a fúria, a culpa, a frustação, e tudo aquilo que
tivesse o poder de reinar em nossa alma, era, para os gregos, uma espécie de “páthos”.
É interessante observar, então, que
o uso que Dostoievski – como todo grande autor ao construir um "vocabulário" próprio – faz da palavra “doença”, não é o que usualmente
conhecemos como uma disfunção corporal. O importante a assinalar é que a
palavra “doença”, para o autor russo, evoca todo um universo de relações, e
sentidos, que transcende os fatos do corpo – a doença não é, para ele, somente um
fenômeno corporal, mas sim fruto de males que estão para além dos dados “materiais”.
Quando, então, nos referimos à uma doença – se partirmos da mesma intenção de
Dostoievski – estaremos nos referindo não somente a um fato sentido pelo corpo,
mas a um “todo” que se dá entre o corpo e a alma. Assim como o filósofo romeno Constantin
Noica, Dostoiévski nos faz acreditar que há “doenças do espírito”, e que, se
não forem tratadas, não somente uma parte de nós padecerá, mas, assim como no
caso de Raskolnikóv, todo o nosso ser.
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