sábado, 10 de outubro de 2020

Dostoiévski e a doença

 

Dostoiévski e a doença



Fazia tempo que eu não parava para ler Dostoiévski. Aproveitei o pouco tempo vago que tive aqui e acolá, nessas últimas semanas, e comecei a reler, considerada por muitos, a Magnum opus do autor, “Crime e Castigo”. Me deparando de novo com esse clássico, e já munido com a experiência das leituras de outras de suas obras, não pude deixar de notar o uso incomum que o escritor russo faz da palavra “doença”.  Vejamos...

A partir do fatídico episódio do assassinato da usurária vetusta – na verdade, acredito que até antes disso –, vemos Raskolnikóv, assim como o homem de “Notas do subsolo”, sofrer de uma angustiante doença que o esgota. Ele anda para lá e para cá nas ruas de São Petersburgo sempre muito pálido e embotado. Todos, ao vê-lo, se referem a ele como um sujeito que sofre de algum mal: de uma doença. Inclusive, os personagens que o cercam, quando o encontram, lamentam-se ao dizer “Essa doença está acabando com Ródin (apelido do personagem)”. O mais curioso disso tudo é que ninguém, assim como no caso do homem do subsolo, sabe nomear a doença a qual o jovem padece. Zóssimov, o médico arranjado por seu amigo Razumikhin, é o único que arrisca a dar um palpite ingênuo, ao dizer que o seu “mal” parece estar atrelado à uma “ideia fixa”. Mas, relacionado à idéia fixa ou não, qual é a doença que tanto o faz sofrer? E, afinal de contas, o que quer Dostoiévski ao se referir a este mal como uma “doença”?

Comumente, quando nós mencionamos que alguém está “doente”, não só damos nome à doença – como à inofensiva gripe até ao temeroso câncer –, mas também, nessa identificação com o nome, reconhecemos que o termo “doença” está relacionado a um mal engendrado no corpo. Mas não é esse o uso que Dostoiévski faz da palavra. O mal de Raskolnikóv não é um mal engendrado no corpo. O que vemos, ao longo da história, é que a doença que tanto fadiga o jovem, parece-nos ser um tipo de afecção do espírito.

Desde o episódio do assassinato, e sendo alimentado pelo medo, Raskolnikóv sente o peso de carregar consigo, em sua alma, uma culpa existencial muito mais profunda que a do fato de ter sido o agente daquela infeliz ação: a culpa do pecador.  Raskolnikóv é, como o homem do subsolo, um sujeito que também possui aquilo que Dostoievski se referiu como excesso de consciência, isto é, o impacto das suas ações não é sentido de modo “banal”. O excesso de consciência é o que o faz absorver a culpa como pecado; que o faz sentir o peso e a carga moral do seu ato como doença. Em outras palavras, o ato, sentido inconscientemente como pecado, e levando consigo o peso da culpa, torna-se uma “doença” à medida que o sujeito, ao senti-lo e ruminá-lo, deixa-se consumir por ele.

A visão de doença construída por Dostoievski se assemelha à visão que os gregos tinham sobre o “Páthos”. Para os gregos, qualquer tipo de mal que fizesse com que perdêssemos o juízo, e, assim dizendo, se apoderasse da nossa psique, era um tipo de doença, de “páthos” – e daqui deriva o termo paixão – que, uma hora ou outra, seria sentida, também, pelo corpo. O ódio, a fúria, a culpa, a frustação, e tudo aquilo que tivesse o poder de reinar em nossa alma, era, para os gregos, uma espécie de “páthos”.

É interessante observar, então, que o uso que Dostoievski – como todo grande autor ao construir um "vocabulário" próprio – faz da palavra “doença”, não é o que usualmente conhecemos como uma disfunção corporal. O importante a assinalar é que a palavra “doença”, para o autor russo, evoca todo um universo de relações, e sentidos, que transcende os fatos do corpo – a doença não é, para ele, somente um fenômeno corporal, mas sim fruto de males que estão para além dos dados “materiais”. Quando, então, nos referimos à uma doença – se partirmos da mesma intenção de Dostoievski – estaremos nos referindo não somente a um fato sentido pelo corpo, mas a um “todo” que se dá entre o corpo e a alma. Assim como o filósofo romeno Constantin Noica, Dostoiévski nos faz acreditar que há “doenças do espírito”, e que, se não forem tratadas, não somente uma parte de nós padecerá, mas, assim como no caso de Raskolnikóv, todo o nosso ser.

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