sábado, 18 de julho de 2020

Afinal, o que é o mito?




Na excelente e curta introdução à mitologia grega, Pierre Grimal nos diz que, assim como o logos, o mito é uma dimensão da linguagem. Mas, o que significa dizer que as lendas de heróis – como as de Hércules –, ou os antigos relatos cosmogônicos, eram “linguagem”?  É claro que a imortalização daquelas histórias, seja pelas mãos de Homero e Hesíodo, seja pela oralidade da memória popular, nos coloca diante delas como “fala”, como aquilo que é “contado” para nós – sendo assim, linguagem. E era a este fenômeno que Grimal está se referindo?
O mito, por meio da evocação das suas imagens e narrativas, transportava indivíduos e comunidades inteiras à um tipo de abertura para a realidade que somente a linguagem, enquanto fenômeno mediador do mundo, pode proporcionar. O mythos não é um meio qualquer de se referir ao mundo; muito menos, é uma forma demonstrativa (movida por logos) de explicá-lo. A essência do mito reside no próprio poder da linguagem de nos transportar para um mundo de sentimentos, memórias e, principalmente, significados inefáveis. O mito, na medida em que narra, e que nos “diz” algo, nos coloca diante de um tipo de compreensão acerca do “nosso” mundo, de modo que nem mesmo as mais perfeitas descrições científicas podem nos proporcionar – podendo-se dizer que toda literatura já residia, de modo embrionário, naquelas histórias.
Dizer que o grego tinha um mito para tudo, isto é, para as explicações históricas sobre a formação da sua pólis, para um espaço geográfico (como o monte Taigeto), ou até para acasos do destino, era dizer que aqueles indivíduos, na busca por sentido, recorriam a essas histórias, às narrativas, para sentirem que o mundo também queria lhes dizer algo; que o mundo falava com eles, sendo aquelas histórias somente “modos” da fala do mundo.
Pode-se entender que o mito aparece, não só para os gregos, mas ainda para nós, como uma dimensão mesma da linguagem, um fenômeno que irrompe da busca incessante do homem para se sentir pertencente ao mundo. Ao revivermos essas longínquas e, ao mesmo tempo, atualíssimas histórias, ao nos confrontarmos com os seus diferentes usos nas tragédias e epopéias, um tipo de “fenda” apresenta-se à nossa consciência. É por meio desse evocar imagético, na forma de mythos, da narrativa por excelência, que, não somente o homem primitivo, mas o homem, no contínuo exercício da sua humanidade, e com o distinto uso da linguagem, apodera-se da própria vida.


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