Na excelente e curta introdução à
mitologia grega, Pierre Grimal nos diz que, assim como o logos, o mito é
uma dimensão da linguagem. Mas, o que significa dizer que as lendas de heróis –
como as de Hércules –, ou os antigos relatos cosmogônicos, eram “linguagem”? É claro que a imortalização daquelas
histórias, seja pelas mãos de Homero e Hesíodo, seja pela oralidade da memória
popular, nos coloca diante delas como “fala”, como aquilo que é “contado” para
nós – sendo assim, linguagem. E era a este fenômeno que Grimal está se
referindo?
O mito, por meio da evocação das
suas imagens e narrativas, transportava indivíduos e comunidades inteiras à um
tipo de abertura para a realidade que somente a linguagem, enquanto fenômeno mediador
do mundo, pode proporcionar. O mythos não é um meio qualquer de se
referir ao mundo; muito menos, é uma forma demonstrativa (movida por logos)
de explicá-lo. A essência do mito reside no próprio poder da linguagem de nos
transportar para um mundo de sentimentos, memórias e, principalmente,
significados inefáveis. O mito, na medida em que narra, e que nos “diz” algo, nos
coloca diante de um tipo de compreensão acerca do “nosso” mundo, de modo que
nem mesmo as mais perfeitas descrições científicas podem nos proporcionar – podendo-se
dizer que toda literatura já residia, de modo embrionário, naquelas histórias.
Dizer que o grego tinha um mito
para tudo, isto é, para as explicações históricas sobre a formação da sua
pólis, para um espaço geográfico (como o monte Taigeto), ou até para acasos do
destino, era dizer que aqueles indivíduos, na busca por sentido, recorriam a
essas histórias, às narrativas, para sentirem que o mundo também queria lhes dizer
algo; que o mundo falava com eles, sendo aquelas histórias somente “modos” da
fala do mundo.
Pode-se entender que o mito
aparece, não só para os gregos, mas ainda para nós, como uma dimensão mesma da
linguagem, um fenômeno que irrompe da busca incessante do homem para se sentir
pertencente ao mundo. Ao revivermos essas longínquas e, ao mesmo tempo,
atualíssimas histórias, ao nos confrontarmos com os seus diferentes usos nas
tragédias e epopéias, um tipo de “fenda” apresenta-se à nossa consciência. É
por meio desse evocar imagético, na forma de mythos, da narrativa por
excelência, que, não somente o homem primitivo, mas o homem, no contínuo
exercício da sua humanidade, e com o distinto uso da linguagem, apodera-se da
própria vida.
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