quarta-feira, 22 de julho de 2020

Conto: Sem fome


                                                   

Enquanto aquele dia enevoado findava-se, ele aproveitou o pouco da claridade cinzenta que entrava pela janela. No quarto, a penumbra era suficiente para lançar luz nos papéis sobre a mesa. Começou a revirá-los. Mexe daqui, mexe dali. Os movimentos dos braços, em incessante busca, aumentavam a desorganização dos papéis. Conseguiu. Pausa e suspiro de alívio: estava às mãos o que queria. Trouxe, para próximo dos seus olhos, as duas fotos que procurava – queria ver mais de perto aquele momento, já distante e cristalizado.

Nas fotos, ele e seu pai: sorrisos largos, abraçados, como dois grandes amigos. Na primeira, os dois com gorros rubros, sentados, lado a lado, no sofá bege da sala. Ao lado, um miúdo pinheiro de folhas verdes e artificiais, ornado de pequenas bolas douradas e vermelhas: era natal. Na segunda foto, estavam os dois em pé, próximos à churrasqueira de barro: era dia de festa na casa.

Olhou demoradamente para elas enquanto revivia cada um daqueles momentos em sua memória.

–  Parece que foi ontem – disse para si, levando as mãos à cabeça. E, enquanto ali se deteve, levantou o semblante; voltou-se para a janela. Fechou os olhos. Conteve as lágrimas.

– Não, não... não posso chorar, meu pai não iria gostar.

            Os anos de cumplicidade vieram à mente naquele encontro com o passado. Já faz alguns meses, pensou. Sentia que o caminhar dos dias não ia diminuir o sentimento de desamparo. Precisava guardar qualquer coisa que fizesse jus à presença daquela figura paterna. Achou as fotos que queria, mas a evocação dessas lembranças só aumentou a sua angústia diante do destino implacável.

            Tudo aconteceu de forma tão repentina! Estranhou a sensação de distância entre o passado e o presente. Parece que havia só alguns dias que tinha feito suas ligações noturnas ao pai. Quando começavam a falar, se demoravam em seus telefonemas: conversavam amenidades; discutiam coisa séria.

            Sentou-se na cadeira próxima à mesa, e pôs-se a refletir. Pensou como todas aquelas cotidianidades eram importantes para ele. Gostava de ouvir as opiniões do seu pai nos assuntos mais miúdos.

– Será que ele sabia o quanto tudo isso era importante para mim? – proferiu em voz alta

            Tentando se recompor, encarava as fotos novamente, colocadas em cima da mesa. Ali, sentado, adveio a idéia que há no mundo insignificâncias insubstituíveis, como aquelas que praticava com o pai.

            Virou-se para janela novamente. A penumbra se dissipara, e uma escuridão tomara conta do quarto: a noite chegou. Não teve forças para levantar-se e acender a luz. Em meio às reflexões, um cansaço o abatera. Os meses, desde que tudo aconteceu, pesavam as costas. Seguia, um dia após o outro, fiel à rotina, mas sem o mesmo vigor – a vida já não era mais a mesma. Perdeu um dos seus combustíveis diários. Esse pensamento era o único que lhe fazia sentido para explicar aquele abatimento incomum.

            Quis ver se havia algo de novo no celular. Olhou rapidamente a tela: uma mensagem; era sua namorada perguntando se estava tudo bem. Ela sabia que ele ia retornar à casa que crescera – de onde se mudou havia tempo. Incentivado pelo próprio pai, foi ganhar a sua vida; traçar novos rumos. Não quis responder à mensagem. Colocou o aparelho no silencioso e desligou a tela. Sem perturbações.

            Ao virar o rosto, viu a cama que passou anos sendo o porto dos seus sonhos. Quis jogar-se ali para tentar reviver aqueles tempos. Pensou em quão bom seria fugir da sensação de desalento, de desabrigo da alma. Desejava, por um momento, que tudo fosse onírico; se cansou de carregar a vigília do presente.

            Colocou os braços sobre a mesa e encostou sua testa sobre eles. A mãe o gritara

– Oh, menino! Você não vai vir comer não? Desce daí!

A mãe tinha feito arroz, feijão, bife, fritas... tudo aquilo que ele adorava; bastava a mesa estar pronta e ele não perdia tempo para fartar-se. Mas, ao pensar na velha mesa da cozinha posta, pensou no seu pai, nos jantares em família. Subiu-lhe um mal-estar. A imagem das suas comidas preferidas não o apetecia.  Tudo se transfigurou, ganhou um ar mórbido. O simples ato de imaginar-se colocando o garfo na boca revirava o estomago. Não era desse alimento que precisava. Deu uma lufada, recuperou o fôlego e respondeu à mãe

– Não, mãe, não quero comer. Estou sem fome!

 

sábado, 18 de julho de 2020

Afinal, o que é o mito?




Na excelente e curta introdução à mitologia grega, Pierre Grimal nos diz que, assim como o logos, o mito é uma dimensão da linguagem. Mas, o que significa dizer que as lendas de heróis – como as de Hércules –, ou os antigos relatos cosmogônicos, eram “linguagem”?  É claro que a imortalização daquelas histórias, seja pelas mãos de Homero e Hesíodo, seja pela oralidade da memória popular, nos coloca diante delas como “fala”, como aquilo que é “contado” para nós – sendo assim, linguagem. E era a este fenômeno que Grimal está se referindo?
O mito, por meio da evocação das suas imagens e narrativas, transportava indivíduos e comunidades inteiras à um tipo de abertura para a realidade que somente a linguagem, enquanto fenômeno mediador do mundo, pode proporcionar. O mythos não é um meio qualquer de se referir ao mundo; muito menos, é uma forma demonstrativa (movida por logos) de explicá-lo. A essência do mito reside no próprio poder da linguagem de nos transportar para um mundo de sentimentos, memórias e, principalmente, significados inefáveis. O mito, na medida em que narra, e que nos “diz” algo, nos coloca diante de um tipo de compreensão acerca do “nosso” mundo, de modo que nem mesmo as mais perfeitas descrições científicas podem nos proporcionar – podendo-se dizer que toda literatura já residia, de modo embrionário, naquelas histórias.
Dizer que o grego tinha um mito para tudo, isto é, para as explicações históricas sobre a formação da sua pólis, para um espaço geográfico (como o monte Taigeto), ou até para acasos do destino, era dizer que aqueles indivíduos, na busca por sentido, recorriam a essas histórias, às narrativas, para sentirem que o mundo também queria lhes dizer algo; que o mundo falava com eles, sendo aquelas histórias somente “modos” da fala do mundo.
Pode-se entender que o mito aparece, não só para os gregos, mas ainda para nós, como uma dimensão mesma da linguagem, um fenômeno que irrompe da busca incessante do homem para se sentir pertencente ao mundo. Ao revivermos essas longínquas e, ao mesmo tempo, atualíssimas histórias, ao nos confrontarmos com os seus diferentes usos nas tragédias e epopéias, um tipo de “fenda” apresenta-se à nossa consciência. É por meio desse evocar imagético, na forma de mythos, da narrativa por excelência, que, não somente o homem primitivo, mas o homem, no contínuo exercício da sua humanidade, e com o distinto uso da linguagem, apodera-se da própria vida.