Aborto e o caos social: o que as tragédias gregas têm a nos dizer?
Em meio a
tanto alvoroço social, decorrente dessa infeliz e iminente situação do aborto
de uma menina de 10 anos, que muito deve ter sofrido em sua vida, me veio à
mente o pensamento do quão trágica, no sentido grego da palavra, é a situação
dessa criança. De um lado, estão aqueles defensores ávidos da expansão de
medidas pró aborto, em nome de uma causa “social”; do outro, há aqueles que
fazem militância , seja em frente a um hospital, seja em rede social, em nome
de uma ordem que transcende, não somente o nosso mundo, mas à capacidade cognitiva
dessa gente. E entre dois grupos, que anseiam por reparação, há sempre um
indivíduo sozinho e, ao mesmo tempo, imerso em uma situação aterradora. Mas,
afinal, o que tem de trágico, mesmo, nisso tudo?
Aos que não
estão habituados às tragédias gregas, digo que uma das suas principais marcas era
a tentativa de reparação de um chaos, de uma húbris social, por
meio da dissolução de um indivíduo. Em Édipo, por exemplo, quando o mesmo
descobre que é ele o responsável pelo mal da peste causado à sua cidade, há uma
reparação por meio de sua cegueira auto infligida e, consequentemente, a sua
ida para Colono. De modo não diferente, em Antígona, também, no final da
tragédia, há a reparação do chaos perpetrado pelo herói por meio de sua
morte. O fato é que essa estrutura narrativa trágica, de reparação por meio do
sangue do próprio herói – ou sangue de alguém que se interliga a ele –, segue-se
na maioria das tragédias: sempre deve haver algum tipo de sacrifício em prol da
purificação e restabelecimento da ordem. Se olharmos a peça “Medéia”, por
exemplo, onde a personagem, para vingar-se de Jasão, mata os próprios filhos –
embora o sangue derramado não tenha sido o seu (ou até mesmo o de Jasão) –,
vemos que Medeia acredita estar reparando os danos sofridos por meio do
sacrifício de seus filhos, aqueles que, não somente são fruto da ascensão e
queda da heroína, mas que interliga-se a ela e a Jasão pelos laços de sangue.
Agora, o que se revela como uma das estruturas
fundamentais destas obras, é que o sacrifício nunca é fruto de um desejo, mas
sim, de um pedido ardente. No entanto, se o sacrifício é um “pedido”, por quem,
então, ele é feito? E aqui o papel do Coro aparece como crucial. É a voz do
coro, sempre, que anseia pelo sacrifício; que força com que o herói busque por
alguma reparação. O coro não é, somente, a voz do coletivo ou da pólis: o coro
é a voz da própria ordem tentando se restabelecer novamente – ou, a partir da
cosmovisão grega, é, enquanto buscam aplacar seus apetites, fruto dos desejos
ensandecidos de entidades primordiais conhecidas como “fúrias”, e que há muito
inferniza a vida dos seres humanos.
Vejamos, por
exemplo, um trecho do coro das mulheres de corinto na obra “Medeia”, “Assim farei.
Com justiça castigarás o teu marido, ó Medeia. Não me admiro que deplores a tua
sorte.” . Reparem na expressão “Com Justiça”, pois é por meio da preposição
“com” que o coro diz à Medeia o modo como ela deve reparar aquela iniquidade –
o inevitável sacrifício de seus filhos.
No coro de Édipo Rei, existem dois momentos
marcantes, também. O primeiro, quando Édipo ainda buscava as razões pelas quais
a sua cidade sofria a mazela da peste “Mas suplicamos ao deus que não cesse a
campanha pela salvação da cidade” ; e o segundo momento, quando o coro, já
refletindo acerca da deplorável situação de Édipo diz “No entanto, para
dizer-te a verdade, foi graças a ti que um dia pudemos respirar tranqüilos e
dormir em paz!”. O que há de interessante, nesses dois momentos da peça, é que
no primeiro o Coro pede ao herói que continue a sua busca pela reparação, pois
só assim a ordem poderia ser restabelecida e a cidade ser salva. No segundo
momento, o que é interessante e, ao mesmo tempo, paradoxal, é que o coro
reconhece que fora Édipo o responsável pelo início e pelo fim do chaos
que acometeu a cidade. Outrora, ao desafiar a Esfinge, Édipo livrara Tebas de
um grande mal, ao passo que, sem saber, cumpria a profecia ao matar o próprio
pai, levando, novamente, à cidade as maldições. Somente no ato final, em que
derrama o próprio sangue cegando-se e encerrando o ciclo, é que a cidade pode
reviver a paz.
As histórias
antes relatadas podem parecer um tanto absurdas. À primeira vista, não
acreditamos que entre os gregos devia existir tamanha violência. Lembremos que o
conteúdo dessas narrativas trágicas deriva de mitos lendários de uma época que,
embora já passada, ainda era presente na memória dos gregos. Vale ressaltar que
alguns historiadores apontam, entre eles o conhecido H.D. Kitto, que as lendas
das filhas imoladas de Jacinto, derivam da prática do sacrifício humano, no
período da Grécia Micênica, realizadas, comumente, em nome de Apolo – deus, não
analogicamente à toa, da “harmonia”.
O filósofo
francês, René Girard, conhecido pelo seu conceito de “Bode expiatório” –
conceito este, que, alinhado com o que vem sendo dito, explicita como
comunidades “escolhem”, geralmente, algum indivíduo para sofrer as penalidades
necessárias para o restabelecimento do equilíbrio – diz o seguinte a respeito à
ideia de sacrifício “O sacrifício, que do meu ponto de vista é a primeira
instituição humana, consiste, para uma comunidade que tem experienciado este
fenômeno e se tem reconciliado, procurar a repetição da morte de uma vítima, como
da primeira vez em que essa vítima que juntos matamos, em nome da comunidade,
nos salvou.” Ou seja, o sacrifício é, por excelência, a morte daquele que é
escolhido como o “expiador” dos pecados de uma comunidade. Girard ainda diz que
as práticas de linchamento – ou, ironicamente, intitulada pelos jovens de hoje
em dia de “cancelamento” – não podem ser excluídas como uma forma de sacrifício,
isto é, na busca pela dissolução de um indivíduo em nome do coletivo.
Contrário às
práticas pagãs, e rompendo com o arquétipo da busca por reparação da
mentalidade primitiva, o Cristianismo, que é inegavelmente uma força formadora
do nosso processo civilizacional, rompe com a busca trágica por reparação e a
consequente dissolução do indivíduo. Em seu “mito” fundador, Cristo morrera por
nós para que os nossos pecados fossem expiados e, com isso, nós mesmos não nos
tornássemos “objetos de sacrifício”. Tomado como “bode expiatório” do povo
Judeu, em sua época, Cristo ao sacrificar-se, liberta, então, por meio do seu
ato, todos nós, da necessidade de nos oferecermos em sacrifício da ordem – pois
a ordem se encontra em Cristo, ele é a justiça encarnada. Ao passo que a
justiça se fez presente na terra, atraindo para si os males humanos, o homem,
que busca a salvação eterna através de Cristo e seus ensinamentos, salva, não
somente a sua alma, mas a si mesmo enquanto indivíduo – podendo-se dizer,
então, que, diferente das práticas primitivas, está contido, na salvação
cristã, a não dissolução da pessoa em prol da comunidade, pois aquele que segue
cristo não “morre”, e muito menos se “apaga”.
Vê-se
que nesse infeliz caso da menina de 10 anos, quando as massas, então entregues
às forças “ocultas” que anseiam por reparação, repetem a estrutura mítica de
narrativa – e não é por ser mítica que é “ilusória” – , revelando-a como marca,
ainda presente, na psique humana. Contudo, são nesses momentos de loucura e
frenesi que devemos tentar voltar os nossos olhos para aquilo que nos formou
como civilização, pois, se deixarmos que os anseios mais vis de nossa alma se
professem, e o desfecho trágico se cumpra, sempre, algum indivíduo, sofrerá com
os desejos das “fúrias” e os pedidos do coro, tendo que saciar esse apetite por
reparação, seja com a vida, seja com a morte.
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