terça-feira, 18 de agosto de 2020

Aborto e o caos social: o que as tragédias gregas têm a nos dizer?

 

Aborto e o caos social: o que as tragédias gregas têm a nos dizer?


Em meio a tanto alvoroço social, decorrente dessa infeliz e iminente situação do aborto de uma menina de 10 anos, que muito deve ter sofrido em sua vida, me veio à mente o pensamento do quão trágica, no sentido grego da palavra, é a situação dessa criança. De um lado, estão aqueles defensores ávidos da expansão de medidas pró aborto, em nome de uma causa “social”; do outro, há aqueles que fazem militância , seja em frente a um hospital, seja em rede social, em nome de uma ordem que transcende, não somente o nosso mundo, mas à capacidade cognitiva dessa gente. E entre dois grupos, que anseiam por reparação, há sempre um indivíduo sozinho e, ao mesmo tempo, imerso em uma situação aterradora. Mas, afinal, o que tem de trágico, mesmo, nisso tudo?

Aos que não estão habituados às tragédias gregas, digo que uma das suas principais marcas era a tentativa de reparação de um chaos, de uma húbris social, por meio da dissolução de um indivíduo. Em Édipo, por exemplo, quando o mesmo descobre que é ele o responsável pelo mal da peste causado à sua cidade, há uma reparação por meio de sua cegueira auto infligida e, consequentemente, a sua ida para Colono. De modo não diferente, em Antígona, também, no final da tragédia, há a reparação do chaos perpetrado pelo herói por meio de sua morte. O fato é que essa estrutura narrativa trágica, de reparação por meio do sangue do próprio herói – ou sangue de alguém que se interliga a ele –, segue-se na maioria das tragédias: sempre deve haver algum tipo de sacrifício em prol da purificação e restabelecimento da ordem. Se olharmos a peça “Medéia”, por exemplo, onde a personagem, para vingar-se de Jasão, mata os próprios filhos – embora o sangue derramado não tenha sido o seu (ou até mesmo o de Jasão) –, vemos que Medeia acredita estar reparando os danos sofridos por meio do sacrifício de seus filhos, aqueles que, não somente são fruto da ascensão e queda da heroína, mas que interliga-se a ela e a Jasão pelos laços de sangue.

 Agora, o que se revela como uma das estruturas fundamentais destas obras, é que o sacrifício nunca é fruto de um desejo, mas sim, de um pedido ardente. No entanto, se o sacrifício é um “pedido”, por quem, então, ele é feito? E aqui o papel do Coro aparece como crucial. É a voz do coro, sempre, que anseia pelo sacrifício; que força com que o herói busque por alguma reparação. O coro não é, somente, a voz do coletivo ou da pólis: o coro é a voz da própria ordem tentando se restabelecer novamente – ou, a partir da cosmovisão grega, é, enquanto buscam aplacar seus apetites, fruto dos desejos ensandecidos de entidades primordiais conhecidas como “fúrias”, e que há muito inferniza a vida dos seres humanos.

Vejamos, por exemplo, um trecho do coro das mulheres de corinto na obra “Medeia”, “Assim farei. Com justiça castigarás o teu marido, ó Medeia. Não me admiro que deplores a tua sorte.” . Reparem na expressão “Com Justiça”, pois é por meio da preposição “com” que o coro diz à Medeia o modo como ela deve reparar aquela iniquidade – o inevitável sacrifício de seus filhos.

 No coro de Édipo Rei, existem dois momentos marcantes, também. O primeiro, quando Édipo ainda buscava as razões pelas quais a sua cidade sofria a mazela da peste “Mas suplicamos ao deus que não cesse a campanha pela salvação da cidade” ; e o segundo momento, quando o coro, já refletindo acerca da deplorável situação de Édipo diz “No entanto, para dizer-te a verdade, foi graças a ti que um dia pudemos respirar tranqüilos e dormir em paz!”. O que há de interessante, nesses dois momentos da peça, é que no primeiro o Coro pede ao herói que continue a sua busca pela reparação, pois só assim a ordem poderia ser restabelecida e a cidade ser salva. No segundo momento, o que é interessante e, ao mesmo tempo, paradoxal, é que o coro reconhece que fora Édipo o responsável pelo início e pelo fim do chaos que acometeu a cidade. Outrora, ao desafiar a Esfinge, Édipo livrara Tebas de um grande mal, ao passo que, sem saber, cumpria a profecia ao matar o próprio pai, levando, novamente, à cidade as maldições. Somente no ato final, em que derrama o próprio sangue cegando-se e encerrando o ciclo, é que a cidade pode reviver a paz.

As histórias antes relatadas podem parecer um tanto absurdas. À primeira vista, não acreditamos que entre os gregos devia existir tamanha violência. Lembremos que o conteúdo dessas narrativas trágicas deriva de mitos lendários de uma época que, embora já passada, ainda era presente na memória dos gregos. Vale ressaltar que alguns historiadores apontam, entre eles o conhecido H.D. Kitto, que as lendas das filhas imoladas de Jacinto, derivam da prática do sacrifício humano, no período da Grécia Micênica, realizadas, comumente, em nome de Apolo – deus, não analogicamente à toa, da “harmonia”.

O filósofo francês, René Girard, conhecido pelo seu conceito de “Bode expiatório” – conceito este, que, alinhado com o que vem sendo dito, explicita como comunidades “escolhem”, geralmente, algum indivíduo para sofrer as penalidades necessárias para o restabelecimento do equilíbrio – diz o seguinte a respeito à ideia de sacrifício “O sacrifício, que do meu ponto de vista é a primeira instituição humana, consiste, para uma comunidade que tem experienciado este fenômeno e se tem reconciliado, procurar a repetição da morte de uma vítima, como da primeira vez em que essa vítima que juntos matamos, em nome da comunidade, nos salvou.” Ou seja, o sacrifício é, por excelência, a morte daquele que é escolhido como o “expiador” dos pecados de uma comunidade. Girard ainda diz que as práticas de linchamento – ou, ironicamente, intitulada pelos jovens de hoje em dia de “cancelamento” – não podem ser excluídas como uma forma de sacrifício, isto é, na busca pela dissolução de um indivíduo em nome do coletivo.

Contrário às práticas pagãs, e rompendo com o arquétipo da busca por reparação da mentalidade primitiva, o Cristianismo, que é inegavelmente uma força formadora do nosso processo civilizacional, rompe com a busca trágica por reparação e a consequente dissolução do indivíduo. Em seu “mito” fundador, Cristo morrera por nós para que os nossos pecados fossem expiados e, com isso, nós mesmos não nos tornássemos “objetos de sacrifício”. Tomado como “bode expiatório” do povo Judeu, em sua época, Cristo ao sacrificar-se, liberta, então, por meio do seu ato, todos nós, da necessidade de nos oferecermos em sacrifício da ordem – pois a ordem se encontra em Cristo, ele é a justiça encarnada. Ao passo que a justiça se fez presente na terra, atraindo para si os males humanos, o homem, que busca a salvação eterna através de Cristo e seus ensinamentos, salva, não somente a sua alma, mas a si mesmo enquanto indivíduo – podendo-se dizer, então, que, diferente das práticas primitivas, está contido, na salvação cristã, a não dissolução da pessoa em prol da comunidade, pois aquele que segue cristo não “morre”, e muito menos se “apaga”.

                Vê-se que nesse infeliz caso da menina de 10 anos, quando as massas, então entregues às forças “ocultas” que anseiam por reparação, repetem a estrutura mítica de narrativa – e não é por ser mítica que é “ilusória” – , revelando-a como marca, ainda presente, na psique humana. Contudo, são nesses momentos de loucura e frenesi que devemos tentar voltar os nossos olhos para aquilo que nos formou como civilização, pois, se deixarmos que os anseios mais vis de nossa alma se professem, e o desfecho trágico se cumpra, sempre, algum indivíduo, sofrerá com os desejos das “fúrias” e os pedidos do coro, tendo que saciar esse apetite por reparação, seja com a vida, seja com a morte.



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