domingo, 3 de janeiro de 2021

Feijão e o sonho: um retrato do abismo existencial brasileiro.

 

Feijão e o sonho: um retrato do abismo existencial brasileiro.

O romance “Feijão e o sonho”, publicado em 1938, e de autoria de Orígenes Lessa, nos coloca diante dos sofrimentos e angústias do poeta Campos Lara. Lara, ou Juca, como é chamado na história pela a esposa Maria Rosa, é um típico “idealista”: vive para a poesia e seus ideais, mas não vive para a “vida”. As consequências disso são desastrosas: Lara está sempre com uma pilha de contas para pagar, devendo a Deus e o mundo, filhos cheios de fome e uma esposa amargurada com a vida de miséria que levam. Maria Rosa, ou “Rosinha”, é, ao contrário de Lara, uma pessoa “prática”. Ela não se preocupa com glórias imortalizadas nas letras; antes a glória terrena – arroz e feijão na mesa, boa roupa, bons móveis, boa vida – do que uma nobre utopia que não alimenta as bocas.  Maria Rosa, na estória, chega a invejar a sua prima, Creusa, por viver uma “boa vida” ao lado do fazendeiro, e caipira, Gomes. Gomes não sabe nem falar “Tietê”, mas dá tudo do bom e do melhor para Creusa – enquanto Lara só lhe dá desgosto e, é claro, poesia.  E é em meio a este antagonismo dialético, entre o idealismo de Campos Lara, e a “praticidade” de Maria Rosa, que mergulhamos, por assim dizer, no abismo, no fosso, que separa o brasileiro da verdadeira vida, inserindo-o em um drama existencial muito peculiar. Mas que abismo é esse?

Há uns meses – só para ilustrar o que eu quero dizer –, li um pouco sobre a difícil vida do escritor português Alves Redol. Pretendido pelo pai, desde os 14 anos, para a vida do comércio, Redol não teve muito tempo para se dedicar ao sonho de ser escritor. Muito novo, vai à Angola com o intuito de começar novas empreitas comerciais, passa o pão que o diabo amassou, vê de perto a miséria humana e, depois, volta para Portugal desempregado, tendo como único meio de sobrevivência um trabalho que lhe fora arranjado como vendedor de pneus. Em meio a tantos anos de desgraça, não se sabe de onde, extrai forças para publicar, em 1939, o seu primeiro romance, intitulado “Gaibéus”, inaugurando, quase sozinho, o movimento neorrealista em Portugal – e, daí em diante, dá continuidade à sua vida literária. Passando os olhos em poucas páginas de seus romances, vê-se que os anos de penúria não foram esquecidos. Tudo o que viveu, serviu como material bruto para realização do seu “sonho”. Encontramos em Redol um escritor de carne e osso: tudo o que havia presenciado, acha, em seu mundo imaginado, voz; seus dramas conquistam, na culminação dos seus escritos, unidade.

                Voltando ao icónico Campos Lara, vê-se que o que constitui verdadeiramente o seu drama, e tanto o amargura, é a incapacidade de “digerir” a vida que leva. A disparidade do meio social em que vive, tão avesso aos seus ideais, é, para Lara, um martírio. Se a vida de Campos Lara, em meio tão ignóbil, torna-se pesada, para Maria Rosa vergonha não é desconhecer os versos de Baudelaire ou a prosa de Vieira, mas sim ter que carregar, mesmo diante dessa gente, a humilhação de uma vida indigna, somando-se ao fardo de ser a “sombra” de alguém que sequer é capaz de pagar as próprias contas e alimentar os filhos. O interessante desta dicotomia de “Lara e Rosa” é que ambos representam a face de uma mesma moeda, expondo o nosso abismo.  No Brasil, ou vive-se de sonho, tornando-se um homem “desajuizado”, sem força, visto como “louco” e “idealista”, ou, sucumbido às necessidades da vida prática, rebaixa-se a um tipo “mula de carga”, inculto, pragmático e medíocre – os dois? Não dá! Mas, não são os dois pontos de vistas errôneos? Não são ambos, imagens distorcidas do que é a vida? A vida não se resume a pagar as contas, como também não se resume a viver de sonhos e letras.

                Se pegarmos o caso de Alves Redol, veremos a vida de um homem que teve tudo para desistir do seu sonho de juventude. No entanto, em vez de ter sido vítima de inúmeros sofrimentos e amarguras, e ter deixado de mão o seu desígnio, Redol os integrou em sua vida de escritor, ressignificando-os. O grande diferencial do escritor português e de tantas outras figuras ilustres é que elas nos deixaram o legado que a vida é esta busca pela integração de elementos divergentes à nossa personalidade – afinal, não é Goethe quem diz que a maior força que existe é a personalidade humana?

                Segundo Hegel, a consciência de si é adquirida no confronto dialético com aquilo que é o outro, com a alteridade – e o que é o outro senão a circunstância? O ponto chave disso é que a fórmula de Ortega y Gasset, tão repetida atualmente, “Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim” é, na verdade, um outro modo de proferir a busca pela unidade. Platão, por meio dos seus diálogos, tentava encontrar a unidade da experiência vivida por meio da confrontação das reminiscências de partes da própria experiência. Mas essa busca por unidade não é um privilégio só da filosofia. A consciência de si, tão mencionada por Hegel, é, em alguma medida, a unidade da vida; é aquilo que Redol buscou em sua jornada. Quando nos defrontamos com o mundo exterior, diferente e avesso a nós, e, mesmo assim, tentamos ressignificá-lo à luz da nossa consciência, é porque estamos tentando dar unidade àquilo que, em um primeiro momento, parece ser dissolvedor.  Buscar por esta integração entre os acontecimentos exteriores e a nossa personalidade é a entrada no mundo civilizado. Caso contrário, tornamo-nos como os personagens das comédias, sempre abaixo da situação, fragmentados, caricatos, oscilando entre o idealismo e o embrutecimento.

                A oscilação entre “Feijão e o sonho”, o título que dá nome ao livro, não simboliza só as necessidades materiais da vida, personificada na personagem de Maria Rosa, ou a busca por um ideal, retratado no personagem de Campos Lara, mas representa, no abismo que existe entre sonhar e colocar o feijão na mesa, a dificuldade que temos em encontrar um elo entre o real e o ideal. Nossa literatura ainda, desde os tempos de publicação desse romance, não foi capaz de retratar um personagem que fugisse desse esquema. Mas como podem os escritores extraírem uma história que desconhecem? Se a literatura é, como dizia Aristóteles, uma mimesis, como em outras artes, ela é responsável em retratar aquilo que vê. E se não há sujeitos como Alves Redol para serem vistos em nossas terras, então, o que será posto no papel senão aquilo que é o nosso triste e fiel espelho?

2 comentários:

  1. De fato, a nossa cultura é muito dividida entre esses estigmas de pensamento.
    Quando vemos as reações do público perante alguém que estude filosofia, vemos bem isso. As pessoas desacreditam de que ele consiga ganhar o seu próprio feijão e esperam que ele viva apenas de sonhos e viagens, mas ao mesmo tempo isso existe por ser o exemplo comum de pessoas que estudem humanidades puras.

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