Feijão e o sonho: um
retrato do abismo existencial brasileiro.
O romance
“Feijão e o sonho”, publicado em 1938, e de autoria de Orígenes Lessa, nos
coloca diante dos sofrimentos e angústias do poeta Campos Lara. Lara, ou Juca,
como é chamado na história pela a esposa Maria Rosa, é um típico “idealista”:
vive para a poesia e seus ideais, mas não vive para a “vida”. As consequências
disso são desastrosas: Lara está sempre com uma pilha de contas para pagar,
devendo a Deus e o mundo, filhos cheios de fome e uma esposa amargurada com a
vida de miséria que levam. Maria Rosa, ou “Rosinha”, é, ao contrário de Lara,
uma pessoa “prática”. Ela não se preocupa com glórias imortalizadas nas letras;
antes a glória terrena – arroz e feijão na mesa, boa roupa, bons móveis, boa
vida – do que uma nobre utopia que não alimenta as bocas. Maria Rosa, na estória, chega a invejar a sua
prima, Creusa, por viver uma “boa vida” ao lado do fazendeiro, e caipira,
Gomes. Gomes não sabe nem falar “Tietê”, mas dá tudo do bom e do melhor para
Creusa – enquanto Lara só lhe dá desgosto e, é claro, poesia. E é em meio a este antagonismo dialético,
entre o idealismo de Campos Lara, e a “praticidade” de Maria Rosa, que
mergulhamos, por assim dizer, no abismo, no fosso, que separa o brasileiro da
verdadeira vida, inserindo-o em um drama existencial muito peculiar. Mas que
abismo é esse?
Há uns meses –
só para ilustrar o que eu quero dizer –, li um pouco sobre a difícil vida do
escritor português Alves Redol. Pretendido pelo pai, desde os 14 anos, para a
vida do comércio, Redol não teve muito tempo para se dedicar ao sonho de ser
escritor. Muito novo, vai à Angola com o intuito de começar novas empreitas
comerciais, passa o pão que o diabo amassou, vê de perto a miséria humana e,
depois, volta para Portugal desempregado, tendo como único meio de
sobrevivência um trabalho que lhe fora arranjado como vendedor de pneus. Em
meio a tantos anos de desgraça, não se sabe de onde, extrai forças para
publicar, em 1939, o seu primeiro romance, intitulado “Gaibéus”, inaugurando,
quase sozinho, o movimento neorrealista em Portugal – e, daí em diante, dá
continuidade à sua vida literária. Passando os olhos em poucas páginas de seus
romances, vê-se que os anos de penúria não foram esquecidos. Tudo o que viveu,
serviu como material bruto para realização do seu “sonho”. Encontramos em Redol
um escritor de carne e osso: tudo o que havia presenciado, acha, em seu mundo
imaginado, voz; seus dramas conquistam, na culminação dos seus escritos,
unidade.
Voltando
ao icónico Campos Lara, vê-se que o que constitui verdadeiramente o seu drama,
e tanto o amargura, é a incapacidade de “digerir” a vida que leva. A
disparidade do meio social em que vive, tão avesso aos seus ideais, é, para
Lara, um martírio. Se a vida de Campos Lara, em meio tão ignóbil, torna-se
pesada, para Maria Rosa vergonha não é desconhecer os versos de Baudelaire ou a
prosa de Vieira, mas sim ter que carregar, mesmo diante dessa gente, a
humilhação de uma vida indigna, somando-se ao fardo de ser a “sombra” de alguém
que sequer é capaz de pagar as próprias contas e alimentar os filhos. O
interessante desta dicotomia de “Lara e Rosa” é que ambos representam a face de
uma mesma moeda, expondo o nosso abismo.
No Brasil, ou vive-se de sonho, tornando-se um homem “desajuizado”, sem
força, visto como “louco” e “idealista”, ou, sucumbido às necessidades da vida
prática, rebaixa-se a um tipo “mula de carga”, inculto, pragmático e medíocre –
os dois? Não dá! Mas, não são os dois pontos de vistas errôneos? Não são ambos,
imagens distorcidas do que é a vida? A vida não se resume a pagar as contas,
como também não se resume a viver de sonhos e letras.
Se
pegarmos o caso de Alves Redol, veremos a vida de um homem que teve tudo para
desistir do seu sonho de juventude. No entanto, em vez de ter sido vítima de inúmeros
sofrimentos e amarguras, e ter deixado de mão o seu desígnio, Redol os integrou
em sua vida de escritor, ressignificando-os. O grande diferencial do escritor
português e de tantas outras figuras ilustres é que elas nos deixaram o legado
que a vida é esta busca pela integração de elementos divergentes à nossa
personalidade – afinal, não é Goethe quem diz que a maior força que existe é a
personalidade humana?
Segundo
Hegel, a consciência de si é adquirida no confronto dialético com aquilo
que é o outro, com a alteridade – e o que é o outro senão a circunstância? O
ponto chave disso é que a fórmula de Ortega y Gasset, tão repetida atualmente,
“Eu sou eu e minha circunstância, e se não salvo a ela, não me salvo a mim” é,
na verdade, um outro modo de proferir a busca pela unidade. Platão, por meio
dos seus diálogos, tentava encontrar a unidade da experiência vivida por meio
da confrontação das reminiscências de partes da própria experiência. Mas essa
busca por unidade não é um privilégio só da filosofia. A consciência de si, tão
mencionada por Hegel, é, em alguma medida, a unidade da vida; é aquilo que
Redol buscou em sua jornada. Quando nos defrontamos com o mundo exterior,
diferente e avesso a nós, e, mesmo assim, tentamos ressignificá-lo à luz da
nossa consciência, é porque estamos tentando dar unidade àquilo que, em um
primeiro momento, parece ser dissolvedor.
Buscar por esta integração entre os acontecimentos exteriores e a nossa
personalidade é a entrada no mundo civilizado. Caso contrário, tornamo-nos como
os personagens das comédias, sempre abaixo da situação, fragmentados,
caricatos, oscilando entre o idealismo e o embrutecimento.
A
oscilação entre “Feijão e o sonho”, o título que dá nome ao livro, não
simboliza só as necessidades materiais da vida, personificada na personagem de
Maria Rosa, ou a busca por um ideal, retratado no personagem de Campos Lara,
mas representa, no abismo que existe entre sonhar e colocar o feijão na mesa, a
dificuldade que temos em encontrar um elo entre o real e o ideal. Nossa
literatura ainda, desde os tempos de publicação desse romance, não foi capaz de
retratar um personagem que fugisse desse esquema. Mas como podem os escritores
extraírem uma história que desconhecem? Se a literatura é, como dizia
Aristóteles, uma mimesis, como em outras artes, ela é responsável em retratar
aquilo que vê. E se não há sujeitos como Alves Redol para serem vistos em nossas
terras, então, o que será posto no papel senão aquilo que é o nosso triste e
fiel espelho?
De fato, a nossa cultura é muito dividida entre esses estigmas de pensamento.
ResponderExcluirQuando vemos as reações do público perante alguém que estude filosofia, vemos bem isso. As pessoas desacreditam de que ele consiga ganhar o seu próprio feijão e esperam que ele viva apenas de sonhos e viagens, mas ao mesmo tempo isso existe por ser o exemplo comum de pessoas que estudem humanidades puras.
E parabéns pelo seu artigo.
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